TOMBOY (Céline Sciamma, 2011, França)
* “De acordo com alguns dicionários modernos, uma menina TOMBOY é uma garota que tem
características e comportamentos considerados típicos de um menino, o que
inclui usar roupas masculinas, gostar de jogos e atividades que em muitas culturas
são considerados nem um pouco femininos e são dominantes dos garotos”.
Agora sim, o
filme francês que eu havia prometido!
Aqui você confere o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=JvfdCI4MArQ
Ouvi dizer
que houve um burburinho sobre Tomboy ser ou não ser um filme de gênero, na
ocasião do lançamento. Entendo que ele é, sim, um filme de gênero, mas que não
fala de sexo, nem de relações amorosas, ou paixões, ou desdobramentos do tipo,
como é o caso de Azul é a cor mais quente
(Abdellatif Kechiche, 2013), Praia do Futuro (Karim Aïnouz,
2014) ou Carol, (Todd Haynes, 2016)
por exemplo. Não. Tomboy fala de uma menina que gosta de um monte de coisas de
menino. E que um dia ousou ser um menino diante de outros meninos. A diretora
aborda o tema com uma delicadeza única, num longa onde somos contemplados com
atuações extremamente belas, limpas,
maduras e sinceras das meninas (Laurie - Zoé Héran / Lisa - Jeanne Disson / Jeanne
- Mallon Lévana) e também dos garotos, que interagem com elas. Mas Tomboy,
acima de qualquer coisa, fala sobre como o amor e a amizade pode romper
barreiras culturais, preconceitos e intolerâncias.
Tomboy chama
atenção pela ausência de trilha sonora. Em contrapartida, os sons ambiente
(passos, sons pratos e talheres batendo, conversas, risos, água, etc.) se
sobressaem, contribuindo para dar ao filme um contorno realista, de
documentário. A câmera exerce a função de testemunha da vida dupla de Laurie,
registrando seus passos, tornando-se cúmplice de seus segredos. As cenas e os diálogos
são muito “limpos”; são reproduções muito próximas do cotidiano de uma família
comum, o que também reforça o tom documental do filme. Há muitos close-ups, que
causam um efeito de aproximação do espectador com os personagens e suas emoções
(outro recurso comum em documentários).
A câmera
também nos convida a ser parte dos segredos de Laurie, nos apresentando uma
estética fílmica crua, não apenas pelos silêncios que a ausência de uma trilha
sonora ressalta, mas também por elementos e situações que a câmera não mostra.
Em Tomboy aquilo que não nos é mostrado pode nos dizer e nos revelar muito.
Toda essa
crueza estética é contrabalançada com um tom de doçura que se manifesta na
relação de Laurie com outras crianças, principalmente sua irmã mais nova,
Jeanne. Temos em Jeanne um contraponto que acentua o comportamento considerado “masculino”
de Laurie: Jeanne tem o cabelo longo e cacheado, usa vestididinhos, brinca com
bonecas, fala e age de um jeito mais delicado, enquanto Laurie tem o cabelo
curto, usa bermudas e camisetas e gosta de jogar futebol com os meninos.
Outra menina
que se torna importante na vida de Laurie é Lisa, a vizinha do condomínio.
Quando as duas se veem pela primeira vez, Lisa acredita estar diante de um
garoto, impressão que Laurie confirma e incorpora ao dizer que seu nome é
Mikael. É a partir deste encontro com Lisa, portanto, que “surge”, por assim
dizer, uma segunda identidade, masculina, que parece dar vazão a vontades e
desejos legítimos de Laurie.
O espectador
é apresentado à protagonista de maneira bem peculiar: vemos uma criança em um
carro com a figura que corresponde e posteriormente se confirma como seu pai. O
carro está em movimento, então de mudança. Vemos, então, esta criança que
fisicamente (de acordo com padrões culturais que conhecemos) parece um menino:
veste-se como um menino, age como um menino e tem o cabelo bem curto, como o de
um menino. Temos somente estas aparências como informação (o nome ainda não nos
é dito nos primeiros minutos de filme). A revelação do gênero biológico se dá
concomitante à pronuncia dos nomes das duas irmãs. Informação verbal e
não-verbal se expressam ao mesmo tempo, quando elas estão tomando banho na
banheira e brincando, e a mãe as chama. Ambas se levantam e, nuas, percebemos
que o aparente/possível garoto é, na verdade, uma garota. E o nome de batismo
dela é Laurie.
Parece que
“ser um menino” é natural para Laurie, excetuando as preocupações em manter a
segunda identidade, os artifícios que encontra para fazer-se passar por
Mickael, como ensaiar trejeitos de menino diante do espelho, o estar com os
outros garotos e com Lisa, sendo um menino.São cenas construídas de modo a
expressar muita naturalidade,e não só em Laurie/Mikael, mas nas outras crianças
também. Os cenários reforçam a espontaneidade de Laurie/Mikael nesses momentos
descontraídos, da mesma forma que também manifestam o desconforto da
protagonista diante da família, em viver uma vida dupla: o apartamento em que
vive com os pais e a irmã é escuro, mesmo durante o dia; as paredes dos cômodos
têm cores frias e neutras, e se mostram pouco espaçosos, dando ao espectador
uma sensação de melancolia e opressão, que se dilui em grande parte somente quando
as irmãs estão brincando. Por outro lado, as cenas externas em que
Laurie/Mikael brinca com as outras crianças do condomínio são cenários rodeados
de grama verde, luz do sol, plantas, árvores, lagoa... Não há elementos
sombrios, ou que possam nos remeter a opressão ou tristeza, mas sim à liberdade
e alegria.
É curioso
notar que os pais de Laurie parecem não se importarem ou mesmo estranharem o
modo como ela se veste ou se comporta; lidam com muita naturalidade, sem
recriminações, ainda que a mãe tenha manifestado entusiasmo quando a garota
aparece em casa maquiada. Parece que o “problema” se torna real/concreto quando
ele ganha um nome – Mickael; e sai da privacidade do lar.
O pai se
comporta de forma neutra e um tanto passiva quando a identidade Mikael é
descoberta. Diante da filha em prantos, ele se aproxima e lhe diz: “isso vai
passar”. Fica a dúvida: a que o pai se refere que vai passar? A raiva da mãe? O
“conflito“ de gênero da filha? A dor de não ser compreendida? Não sabemos o que
o pai quer dizer. Mas sabemos que este pai não apoiou a filha explicitamente. O
único membro da família a fazer isso foi Jeanne, que tem cerca de cinco anos de
idade, apenas. Ela continuou respeitando
e amando Laurie/Mikael da mesma forma. Outra curiosidade com relação aos pais
de Laurie/Mikael é que eles não têm nome, o que acentua suas funções de tipos
(“o pai”; “a mãe”).
Para a mãe,
não havia problemas em “brincar de ser menino” dentro de casa, longe dos
outros, mas dar a si mesma um nome masculino e levar a brincadeira a sério,
diante de outras crianças, tornou-se uma adversidade de proporções tão desmedidas
que esta mãe passa a atuar como um agente de controle. A partir do momento em
que descobre a identidade Mikael, esta mãe regula, calcula e busca modos
coercitivos para trazer o corpo da personagem de volta à “normalidade”, não só
impondo-lhe o uso de um vestido, uma “marca de menina”, mas expondo-a e a esta
marca, esta “prova de gênero” diante do olhar dos outros, começando pela mãe de
Lisa. É interessante observar o quanto constituía uma prioridade a esta mãe
afirmar a filha como menina, a despeito de qualquer desconforto, embaraço, ou
mesmo sofrimento pelo qual Laurie/Mikael pudesse estar sentindo.
Tomboy é um
filme de amor e de delicadezas, para muitas idades e gêneros...
Abaixo segue
o link de um debate sobre o filme na Universidade de Fortaleza - Unifor, o qual
eu tive o grande prazer de participar, na companhia da Prof. Ana Caroline
Borges, com moderação do Prof. Dr. Márcio
Acselrad, que também coordena o Projeto CineClube Unifor, com sessões abertas
ao público todas as quintas feiras as 13:30h na videoteca do centro de convivência
do campus.