sexta-feira, 23 de junho de 2017

Um filme de amor e delicadezas

TOMBOY (Céline Sciamma, 2011, França)

*De acordo com alguns dicionários modernos, uma menina TOMBOY é uma garota que tem características e comportamentos considerados típicos de um menino, o que inclui usar roupas masculinas, gostar de jogos e atividades que em muitas culturas são considerados nem um pouco femininos e são dominantes dos garotos”.



Agora sim, o filme francês que eu havia prometido!
Aqui você confere o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=JvfdCI4MArQ




Ouvi dizer que houve um burburinho sobre Tomboy ser ou não ser um filme de gênero, na ocasião do lançamento. Entendo que ele é, sim, um filme de gênero, mas que não fala de sexo, nem de relações amorosas, ou paixões, ou desdobramentos do tipo, como é o caso de Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche, 2013), Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014) ou Carol, (Todd Haynes, 2016) por exemplo. Não. Tomboy fala de uma menina que gosta de um monte de coisas de menino. E que um dia ousou ser um menino diante de outros meninos. A diretora aborda o tema com uma delicadeza única, num longa onde somos contemplados com atuações extremamente belas,  limpas, maduras e sinceras das meninas (Laurie - Zoé Héran / Lisa - Jeanne Disson / Jeanne - Mallon Lévana) e também dos garotos, que interagem com elas. Mas Tomboy, acima de qualquer coisa, fala sobre como o amor e a amizade pode romper barreiras culturais, preconceitos e intolerâncias.

Tomboy chama atenção pela ausência de trilha sonora. Em contrapartida, os sons ambiente (passos, sons pratos e talheres batendo, conversas, risos, água, etc.) se sobressaem, contribuindo para dar ao filme um contorno realista, de documentário. A câmera exerce a função de testemunha da vida dupla de Laurie, registrando seus passos, tornando-se cúmplice de seus segredos. As cenas e os diálogos são muito “limpos”; são reproduções muito próximas do cotidiano de uma família comum, o que também reforça o tom documental do filme. Há muitos close-ups, que causam um efeito de aproximação do espectador com os personagens e suas emoções (outro recurso comum em documentários).

A câmera também nos convida a ser parte dos segredos de Laurie, nos apresentando uma estética fílmica crua, não apenas pelos silêncios que a ausência de uma trilha sonora ressalta, mas também por elementos e situações que a câmera não mostra. Em Tomboy aquilo que não nos é mostrado pode nos dizer e nos revelar muito.

Toda essa crueza estética é contrabalançada com um tom de doçura que se manifesta na relação de Laurie com outras crianças, principalmente sua irmã mais nova, Jeanne. Temos em Jeanne um contraponto que acentua o comportamento considerado “masculino” de Laurie: Jeanne tem o cabelo longo e cacheado, usa vestididinhos, brinca com bonecas, fala e age de um jeito mais delicado, enquanto Laurie tem o cabelo curto, usa bermudas e camisetas e gosta de jogar futebol com os meninos.


Outra menina que se torna importante na vida de Laurie é Lisa, a vizinha do condomínio. Quando as duas se veem pela primeira vez, Lisa acredita estar diante de um garoto, impressão que Laurie confirma e incorpora ao dizer que seu nome é Mikael. É a partir deste encontro com Lisa, portanto, que “surge”, por assim dizer, uma segunda identidade, masculina, que parece dar vazão a vontades e desejos legítimos de Laurie.

O espectador é apresentado à protagonista de maneira bem peculiar: vemos uma criança em um carro com a figura que corresponde e posteriormente se confirma como seu pai. O carro está em movimento, então de mudança. Vemos, então, esta criança que fisicamente (de acordo com padrões culturais que conhecemos) parece um menino: veste-se como um menino, age como um menino e tem o cabelo bem curto, como o de um menino. Temos somente estas aparências como informação (o nome ainda não nos é dito nos primeiros minutos de filme). A revelação do gênero biológico se dá concomitante à pronuncia dos nomes das duas irmãs. Informação verbal e não-verbal se expressam ao mesmo tempo, quando elas estão tomando banho na banheira e brincando, e a mãe as chama. Ambas se levantam e, nuas, percebemos que o aparente/possível garoto é, na verdade, uma garota. E o nome de batismo dela é Laurie.

Parece que “ser um menino” é natural para Laurie, excetuando as preocupações em manter a segunda identidade, os artifícios que encontra para fazer-se passar por Mickael, como ensaiar trejeitos de menino diante do espelho, o estar com os outros garotos e com Lisa, sendo um menino.São cenas construídas de modo a expressar muita naturalidade,e não só em Laurie/Mikael, mas nas outras crianças também. Os cenários reforçam a espontaneidade de Laurie/Mikael nesses momentos descontraídos, da mesma forma que também manifestam o desconforto da protagonista diante da família, em viver uma vida dupla: o apartamento em que vive com os pais e a irmã é escuro, mesmo durante o dia; as paredes dos cômodos têm cores frias e neutras, e se mostram pouco espaçosos, dando ao espectador uma sensação de melancolia e opressão, que se dilui em grande parte somente quando as irmãs estão brincando. Por outro lado, as cenas externas em que Laurie/Mikael brinca com as outras crianças do condomínio são cenários rodeados de grama verde, luz do sol, plantas, árvores, lagoa... Não há elementos sombrios, ou que possam nos remeter a opressão ou tristeza, mas sim à liberdade e alegria.


É curioso notar que os pais de Laurie parecem não se importarem ou mesmo estranharem o modo como ela se veste ou se comporta; lidam com muita naturalidade, sem recriminações, ainda que a mãe tenha manifestado entusiasmo quando a garota aparece em casa maquiada. Parece que o “problema” se torna real/concreto quando ele ganha um nome – Mickael; e sai da privacidade do lar.
O pai se comporta de forma neutra e um tanto passiva quando a identidade Mikael é descoberta. Diante da filha em prantos, ele se aproxima e lhe diz: “isso vai passar”. Fica a dúvida: a que o pai se refere que vai passar? A raiva da mãe? O “conflito“ de gênero da filha? A dor de não ser compreendida? Não sabemos o que o pai quer dizer. Mas sabemos que este pai não apoiou a filha explicitamente. O único membro da família a fazer isso foi Jeanne, que tem cerca de cinco anos de idade, apenas.  Ela continuou respeitando e amando Laurie/Mikael da mesma forma. Outra curiosidade com relação aos pais de Laurie/Mikael é que eles não têm nome, o que acentua suas funções de tipos (“o pai”; “a mãe”).

Para a mãe, não havia problemas em “brincar de ser menino” dentro de casa, longe dos outros, mas dar a si mesma um nome masculino e levar a brincadeira a sério, diante de outras crianças, tornou-se uma adversidade de proporções tão desmedidas que esta mãe passa a atuar como um agente de controle. A partir do momento em que descobre a identidade Mikael, esta mãe regula, calcula e busca modos coercitivos para trazer o corpo da personagem de volta à “normalidade”, não só impondo-lhe o uso de um vestido, uma “marca de menina”, mas expondo-a e a esta marca, esta “prova de gênero” diante do olhar dos outros, começando pela mãe de Lisa. É interessante observar o quanto constituía uma prioridade a esta mãe afirmar a filha como menina, a despeito de qualquer desconforto, embaraço, ou mesmo sofrimento pelo qual Laurie/Mikael pudesse estar sentindo.

Tomboy é um filme de amor e de delicadezas, para muitas idades e gêneros...

Abaixo segue o link de um debate sobre o filme na Universidade de Fortaleza - Unifor, o qual eu tive o grande prazer de participar, na companhia da Prof. Ana Caroline Borges, com moderação  do Prof. Dr. Márcio Acselrad, que também coordena o Projeto CineClube Unifor, com sessões abertas ao público todas as quintas feiras as 13:30h na videoteca do centro de convivência do campus.


quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Justiça começa com ela..."


** Mulher Maravilha (2017) tem direção de Patty Jenkins, que também escreveu o roteiro, junto com Allan Heinberg e Geoff Johns.

Eu disse que ia começar este blog com um filme francês, mas fui à estreia de Mulher Maravilha e não poderia deixar de registrar minhas impressões. Aliás, talvez inaugurar o blog com este filme seja até mais... providencial, na falta de uma palavra melhor. E sim, este post vai estar carregado de emoção e parcialidades porque eu sou fã de Diana Prince.

Ademais, eu não poderia agora elaborar agora uma análise fílmica propriamente dita, do jeito que eu gostaria de fazer porque para que eu a fizesse da forma como entendo ser satisfatória, dando conta dos aspectos que considero relevantes como figurino, cenários, montagem, formação de planos e sequencias, banda sonora (e etc) eu precisaria assistir ao filme novamente (de preferência mais duas ou três vezes, pelo menos, com possibilidades de pausar, retroceder e avançar). Não que isso venha a ser um problema, pois este é um filme para se assistir de novo e de novo, mas eu gosto de elaborar uma análise com cuidado. O que vem agora são muito mais impressões de uma fã da heroína que, como muitos e muitos, aguardava esta estréia com ansiedade e ao mesmo tempo com muito receio de ver a tão querida personagem reinventada de modo truncado...

Mas não. Mulher Maravilha não decepciona. Na verdade, tira o seu fôlego com um verdadeiro desfile de elegância, delicadeza, força e determinação. Nos colocamos diante de uma protagonista que te encanta instantaneamente e tira o teu fôlego pelas duas horas e meia de uma narrativa que soube equilibrar elementos mitológicos próprios do universo de Diana com cenas de ação, humor e romance.

Falar de Temiscira poderia render um post à parte. Não sou leitora de quadrinhos, vale a ressalva. O carinho pela Mulher Maravilha eu cultivo dos desenhos animados da Liga da Justiça, incluindo alguns longas que mostravam a terra onde Diana nasceu. E a Temiscira deste filme não decepcionou minhas lembranças... Nem minha imaginação. É uma invenção da natureza na sua forma mais bela e perfeita; parecia até um pedaço do Mundo das Ideias que Platão descrevia.



Admito que esperava uma Diana mais atlética, musculosa mesmo, afinal, trata-se de uma guerreira, que também é uma deusa. Mas o carisma de Gal Gadot quase me fez esquecer essa resistência minha (essa e a de que ela não tem os olhos azuis que a minha Mulher Maravilha dos desenhos tem). São apenas detalhes perto da excelência que se manifesta no desempenho de Gadot. Arrisco dizer que ela será marcada como Mulher Maravilha de forma semelhante a Chistopher Reeves, que ainda hoje permanece como nosso mais querido e lembrado Superman.
Na verdade, quero um post só para o Superman desta nova geração... Ele não me decepciona, de forma alguma. Eu chego a causar espanto em algumas pessoas quando afirmo que gostei de Man of Steel. Mas as expectativas eram altas demais e já tínhamos nosso Reeves, não é...?


Mas voltando para a Mulher Maravilha de Gal Gadot, foi gratificante ter expectativas superadas e não sentir o passar daquelas mágicas duas horas e meia. Depois de lidar com tantas críticas, problemas de roteiro, de montagem e outros tantos desde Man of Steel, temos um filme DC simplesmente digno do universo DC. E sabe, acho muito inspirador (e não por acaso) que tenha acontecido com o filme dela, que é não apenas uma mulher, mas a mulher, a heroína mais famosa do universo dos quadrinhos. Valeu, Diana!