terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A Forma da Água


Olá, querd@s!

Estamos chegando perto da mais badalada festa do cinema hollywoodiano e este ano confesso que está dificil eleger um favorito porque esta safra está incrivel e diversa.  A partir desta semana eu vou trazer aqui alguns indicados ao Oscar de melhor filme, para conversarmos sobre alguns pontos relevantes, de preferencia aqueles mais sutis, que tangenciam as narrativas, que se insinuam...

Mas antes eu quero aproveitar a oportunidade para relembrar o ganhador do Oscar de melhor filme do ano passado, porque ele é desses filmes que rompem a fronteira do entretenimento de sábado de tarde e se constituem em legítima experiência.

(fonte: https://wp.ufpel.edu.br/empauta/files/2018/02/AFormaAguacartaz.jpg)

Hollywood conhece (e reconhece) outras construções do olhar e da experiência do cinema e A Forma da Água (Guilhermo Del Toro, 2017) é um ótimo exemplo. Com treze indicações ao Oscar 2018 e ganhador de 4 (incluindo melhor filme e melhor diretor).

Perpassado pelo silêncio expressivo da protagonista muda, A Forma da Água nos mostra através das conversas entre Eliza e seu rabugento vizinho o quanto nossas falas podem ser vazias de sentido, desenecessárias, ruidosas ou inconvenientes. É o silêncio de Eliza que denuncia a superficialidade das queixas de seu interlocutor.

E é no silêncio que a moça se apaixona e se relaciona: um silêncio cheio de diálogos e emoções. Isso me faz lembrar o escritor David Le Breton, que em "Do silêncio" nos chama atenção que silêncio não é ausência de som, mas ausência de ruídos, ou seja, de sons que de alguma maneira nos agridem. E é no amor e no silêncio que Elisa nos ensina a importancia de desenvolver e exercitar constantemente a capacidade de realmente enxergar as pessoas à nossa volta. E escutá-las. Mesmo no seu silêncio.

Outro ponto que quero destacar deste filme é a forma como ele trabalhou o corpo feminino. Estivemos diante da história de amor que faz uma delicada homenagem ao cinema e traz a sexualidade feminina despida de erotismos ou construções masculinas nos olhares da câmera.





A Forma da Água conseguiu fazer do nu frontal de Elisa (Sally Hawkins) e da masturbação cenas cotidianas, simples e ao mesmo tempo carregadas de significado, desdobrando a rotina solitária e repetitiva da protagonista. A sexualidade da personagem surge de forma orgânica, constituindo-se mais um elemento da narrativa. Não existe finalidade de despertar o desejo por meio da exposição do corpo de Elisa, mas sim naturalizar a sua sexualidade.



O relógio da pia em primeiro plano no fim da cena nos lembra que Elisa está fazendo a banheira mais uma de suas atividades diárias. Entra deixa o relógio na pia com o timer marcado, ou seja, o que ela está fazendo tem hora para terminar. De fato, vemos que ela se arruma, depois cumprimenta o vizinho e segue para o trabalho. A cena nos mostra a nudez da protagonista e a masturbação como uma atividade tão cotidiana quanto fazer uma refeição ou irão trabalho.



Elisa é, assim, uma personagem extraordinária: o corpo magro, pequeno e silencioso manifesta sua força e determinação durante o percurso da narrativa e nos encanta pela delicadeza firme com que se move, dança e corre em busca do amor. Ela segue, conquistadora, e nos deixa com a lembrança e a lição eloquente de um silêncio sincero.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

De volta, e com "Rebecca"

Olá, querid@s! Estou de volta neste começo de 2019 e com pretensões que produzir mais conteudo e ficar mais tempo por aqui. Toda essa ausencia se deu porque eu estive participando de um seleção para um curso de doutorado, e passei, o que é incrivel! Então vieram as eleições e tudo ficou meio confuso e dificil... (Não que agora esteja fácil, maaaaas... A gente recupera o fôlego e prossegue, né?)

Hoje deixo vocês com uma pérola de Alfred Hitchcock, a minha preferida, na realidade. Você encontra esse filme completo no youtube, legendando (talvez tenha dublado também, não tenho certeza).


Eternizado como mestre do suspende, Alfred Hitchcock deixou cerca de 60 obras fílmicas. Seu nome e filmografia são conhecidos, respeitados e admirados entre cinéfilos e estudiosos de cinema em todo o mundo. Aulas, palestras e seminários utilizam cenas de suas obras  para discorrer sobre os elementos da linguagem cinematográfica clássica.

Rebecca, uma mulher inesquecível (1940)

Rebecca é um dos filmes mais intrigantes de Hitchcock, baseado no romance inglês homônimo de Daphne du Maurier, que foi publicado em 1938. É uma obra fílmica extraordinária pelo atravessamento de uma personagem cuja ausência física garante a presença mais intensa. Mais da metade da trama acontece na imensa propriedade que expõem as marcas, os traços e pertences desta fascinante e controversa mulher.

Aqui vemos uma forma muito interessante de se trabalhar o paradoxo da “presença da falta”. Ou seja, o elemento ausente no filme, é, na realidade, o mais presente, e aquele do qual mais se fala. E para ressaltar isso, temos uma garota que se casa com Maxim Winter, o viúvo de Rebecca, mas que não tem nome. A garota se muda com o marido para a referida propriedade, como a nova e legítima Senhora da casa, mas ninguém sabe o seu nome, nem mesmo o espectador. Vale ressaltar que o nome é um elemento muito importante em psicanálise, pois ele é basicamente a primeira inscrição que recebemos ao nascer (muitas vezes antes, ainda no ventre materno).

Para a jovem Sra. de Winter, Rebecca não era apenas uma mulher; ela era a mulher. Se, por um lado, a moça enxergava-se como a imagem simétrica e invertida da ex-esposa de Maxim, por outro, almejava ser como ela. Essa especularidade é particularmente nítida no jogo que Hitchcock estabelece entre os quartos das duas mulheres. Enquanto o da jovem esposa situa-se na ala leste e quase nunca era usado, o da ex-mulher fica na ala oeste e não o é mais. Além disso, o quarto de Rebecca, nas palavras da Sra. Danvers, é o “mais bonito da casa, o único de onde se pode ver o mar”. E essa sala de espelhos tem outro ângulo, ainda mais inusitado. Enquanto a câmera foca a jovem Sra. de Winter ao longo de quase todo o filme, seu nome nunca é dito. Ela permanece anônima. Em contrapartida, jamais vemos imagens de Rebecca, mas ela é falada o tempo todo (WEINMANN, 2016, p. 63).


A memória de Rebecca parece também perturbar Maxim, o viúvo recém-casado, mas enquanto a garota se sente incomodada, insegura e nervosa, o homem parece carregar um grande pesar no olhar, algo de angústia e de culpa, que aos poucos vamos compreendendo. Quando o corpo de Rebecca aparece preso a uma embarcação naufragada a trama ganha novo ritmo e a jovem Sra. Winter começa a se apropriar da função de mulher e de esposa que recebeu em seu matrimônio. 


Há publicações que afirmam que Hitchcock criticava a psicanálise em suas obras fílmicas, mas parece muito mais que o diretor utilizava este conhecimento teórico (o qual, em seus filmes, ele demonstrava ter uma leitura considerável) como material e, em alguns casos, este material se manifestava de maneira debochada. Em outros, constituía um mote para engendrados e densos enredos de mistério e suspense (caso de Rebecca).

Com relação ao deboche, fenômeno semelhante acontecia com as figuras de autoridade em seus filmes (policiais e médicos, especialmente), que comumente manifestavam brutalidade, inocência, ou mesmo caráter duvidoso, assim como as personagens financeiramente mais abastadas. Vale ressaltar que a predominância de tais tipos era masculina... 

O mestre do suspense colocava estas figuras de autoridade em situações embaraçosas ou constrangedoras: a polícia nunca descobria o assassino, e o médico geralmente era o culpado, dava diagnósticos errados, ou enganava pessoas se aproveitando da credibilidade da profissão. É possível que ele também gostasse de “constranger” a psicanálise, refazê-la de modo pasteurizado, como uma tradução daquilo que o público leigo a compreendia. 

Talvez Hitchcock também gostasse de brincar com a ideia que a psicanálise traz, de que não somos completamente donos de nossas escolhas, que existe uma instância poderosa a qual não temos acesso, e que luta para satisfazer desejos que não compreendemos. 
Mas que é parte de nós. E fala por nós. Mesmo quando tentamos silenciar.


Referencias e sugestões de leituras

WEINMANN, Amadeu de Oliveira. A enunciação da feminilidade em Rebecca, de Hitchcock. Trivium-Estudos Interdisciplinares, v. 8, n. 1, p. 60-73, 2016.
MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. Paulus, 2007.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica; tradução Paulo Neves; revisão técnica Sheila Schvartman. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2003.
SPOTO, Donald. Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes. Trad. Mário Ribeiro e Sheila Mazzolenis. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.