terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O humano da loucura

com a colaboração de Samara Ribeiro*


As patologias que acometem a psique humana são vistas como um grande mistério desde os primórdios da história da humanidade. A ciência conseguiu desmistificar uma série de fenômenos anteriormente atribuídos ao sobrenatural; no entanto, no que concerte às doenças mentais, existe ainda uma zona cinzenta, uma parte envolta de aspectos os quais os estudos de psiquiatria, psicopatologia e psicologia ainda não conseguem descortinar completamente.




No filme brasileiro Nise: O coração da loucura (Roberto Berliner, 2016) temos o duro embate entre a visão da psiquiatria tradicional e uma “psiquiatria humanista”, interessada em deslocar a problemática da loucura do campo da psicopatologia médica para o campo da subjetividade, da cultura e do social.

Mais interessado na metodologia de trabalho pioneira da Dra. Nise da Silveira do que propriamente em sua biografia, o filme não menciona os dois anos de prisão e quatro anos de afastamento do exercício da medicina. Durante a Intentona Comunista, Nise foi denunciada por uma enfermeira, por ter em posse livros marxistas. 


O início da narrativa ocorre após a saída de Nise da prisão e seu consequente retorno ao trabalho. A abertura, isenta de trilha sonora musical, traz um plano aberto, mostrando uma fachada e um portão envelhecidos e malcuidados do que depois vemos ser do Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro de 1944. 

A protagonista, personificada na atriz Glória Pires, aparece diante da fachada e bate no portão. Como ninguém atende, ela bate novamente. Diante do repetido silêncio em resposta, a mulher esmurra o portão, quando finalmente ele é aberto. Esta é uma cena que, isenta de palavras e somente ao som das batidas de Nise, constroem metaforicamente o prenúncio de sua trajetória neste hospital: ela não será ouvida, ela será tratada com menosprezo, mas ela não irá se calar, e não irá desistir de provar a viabilidade de um tratamento digno, humano e isento de violência aos internos acometidos de severos tipos de esquizofrenia.

As explicações mágicas para doenças mentais não foram enterradas de maneira definitiva com nossa Pré-história. Elas persistem de maneiras mais ou menos ocultas. A figura do “louco” ainda é fortemente marcada pela visão de senso comum como um doente que com algo de nocivo dentro de si, e que precisa ser extirpado, seja mediante uso de medicamentos ou de inúmeras práticas que prometem resolver (quase que “magicamente”) seus problemas patogênicos.


                             

E no filme de Berliner isso é bem ilustrado logo na primeira cena, que dá sequência à abertura: Nise, recém-chegada no Centro Engenho de Dentro, acompanha uma conferência de psiquiatras, onde o expositor apresenta técnicas consideradas inovadoras de “cura” das doenças mentais que envolvem lobotomias e intervenções cirúrgicas cerebrais com a utilização de picadores de gelo. Estas técnicas prometiam cura através da retirada da “parte doente” do cérebro dos pacientes, que, após o procedimento cirúrgico estariam reabilitados a regressarem aos seus lares e possibilitados de se reinserirem no convívio social.

Vemos também a tendência iniciada na segunda metade do século XIX à supervalorização do saber médico. O lugar de “sujeito do saber” do psiquiatra nos é constantemente apresentado. Na mencionada conferência em que Nise adentra, vemos um público expectador composto por médicos, homens, todos trajados com seus jalecos brancos, vestimenta que nos comunica esse lugar de poder que a medicina ocupa (va?). Nise, no entanto, entra no auditório e participa da reunião sem o seu jaleco, como a informar em silêncio que não precisa ostentar a sua formação.

A ausência do jaleco de Nise também comunica uma relação de igualdade que ela estabelece com os internos, pois não a vemos trabalhando de jaleco dentro da instituição. O filme, portanto, dialoga de maneira crítica com esta realidade da medicina que se enxerga e se mostra como entidade detentora absoluta do saber. E desconstrói, a partir das ações de Nise, a validade desta forma engessada de pensar e tratar a doença mental. A protagonista promove o despojamento de estereótipos no cotidiano do seu atendimento: “eles não são pacientes; nós é que devemos ser pacientes com eles”.

No reconhecimento de vínculos afetivos entre os assistidos e deles com os cachorros que circulam no pátio do hospital psiquiátrico também vemos acontecer uma quebra de modelo segregador da loucura, pois Nise cria um movimento que segue, ao longo do filme, despindo os assistidos dos elementos que os isolam do mundo, das pessoas, da vida que acontece fora dos muros institucionais.

Esta ruptura com a banalização do encarceramento manicomial prossegue na cena (produzida com muita delicadeza, aliás) em que Nise oferece roupas aos internos e os incentiva a usá-las, ao invés dos camisolões sujos e encardidos. As roupas “normais” que Nise entrega representam todo um universo de possibilidades que se abre com o empenho desta psiquiatra em obter resultados concretos na implementação de um tratamento novo e diferenciado ao esquizofrênico.

Nise elabora este tratamento de maneira um tanto intuitiva, durante a sua prática, tendo as Artes Plásticas e a Psicologia Analítica de Jung como referência. Seu método vai se construindo ao longo de cada dia, na interação e observação dos internos nas produções com materiais de pintura durante a terapia ocupacional. Neste processo, ela segue considerando as demandas individuais dos internos, restituindo-lhes, um pouco a cada dia, a dignidade e autonomia que o encarceramento médico havia lhes extirpado.

Nise... é mais do que um convite, mas uma convocação à sociedade, especialmente aos profissionais de saúde mental, a pensarmos os métodos de tratamentos psiquiátricos de que dispomos. Apesar de retratar o Brasil dos anos de 1940, o filme nos lembra o quão ainda estamos próximos desta realidade histórica que segrega o doente mental e lhe aliena de seu direito de existir no mundo. Mostra também o quanto esta forma de pensar a doença mental está próxima daquele pensamento construído no distante (?) primórdio de nossa existência.

Nise da Silveira nos deixou uma lição que o filme muito poeticamente nos lembra: não é o psíquico que determina a relação do Homem com o mundo, mas é a relação do Homem com o mundo que, desde o primeiro instante, estabelece uma maneira de ser, uma certa subjetividade. Assim, todos nós temos algo de patológico, algo que precisa ser cuidado, e que não necessariamente precisa ser extirpado; mas talvez precise ser visto, ouvido e compreendido, ou pelo menos devidamente respeitado.





*A Samara Ribeiro é uma colega muito querida que cursou comigo a disciplina de psicopatologia geral neste semestre, da faculdade de psicologia. Este artigo foi adaptado de um trabalho que fizemos para esta disciplina.






segunda-feira, 2 de outubro de 2017

"The Good Place" e as polarizações do humano





Criada por Michael Schur

Com Kristen Bell e Ted Danson

Olá, queridxs!

Até agora venho trazendo aqui meus olhares sobre filmes não necessariamente Blockbusters e não necessariamente hollywoodianos e pretendo, futuramente, abrir mais ainda este leque no que concerne aos filmes estrangeiros (pensando em alguns... Sugestões? Só os do Almodóvar fariam uma lista de pirar os neurônios! Os filmes dele são muito conhecidos, mas acredito que há toda uma nova geração que ainda não teve o inquieto prazer de assistir esse material).

Mas o assunto de hoje não é o Almodóvar, não são filmes estrangeiros. São séries. Mais precisamente uma série que me chamou muito a atenção semana passada (tanto que já detonei a primeira temporada, sem pena). Porque foi aquela série que ninguém me recomendou, eu não estava procurando nada para escrever sobre, estava apenas procurando na Netflix o que assistir mesmo. Mas a mão coçou e pediu para que The Good Place ganhasse um post e inaugurasse as postagens sobre séries.

(Temos aqui quase nenhum spoiller, ok? Prometo. E é tudo coisa que aparece logo no piloto e no segundo episódio).

The Good Place foi/é produzida por Michael Schur e estreou pela NBC em setembro de 2016. No Brasil e em Portugal as temporadas 1 e 2 estrearam simultaneamente na Netflix neste dia 21 de setembro, com novos episódios semanalmente.

Depois que Eleonor Shellstrop (Kristen Bell) é atingida e morta por um reboque transportando um quadro de avisos com propaganda de produtos para disfunção erétil, acorda e descobre que está na vida após a morte.

Mas quando ela é informada pelo arquiteto e projetista Michael (Ted Danson ) que foi selecionada para viver no "Lugar Bom" porque ajudou a tirar muitos inocentes do corredor da morte, ela percebe alguma coisa está errada, pois as pessoas a estão confundindo com outra mulher de mesmo nome. Agora ela precisa fingir ser a Eleanor que deveria estar ali e, ao mesmo tempo, se tornar verdadeiramente uma boa pessoa para merecer ficar no “Lugar Bom”, sob pena de ser desmascarada e levada para o “Lugar Ruim”.

As coisas podem ficar ainda mais complicadas porque a sua presença no "Lugar Bom" começa a causar problemas, como uma série de “falhas no sistema”, que se manifestam quando Eleanor se comporta de maneira egoísta ou mesquinha. Esses problemas logo chamam a atenção de Michael, que inicia uma investigação com a assistência de Janet, um tipo de sistema operacional absurdamente desenvolvimento que contém todo o conhecimento do universo e tem capacidade de prover os habitantes do “Lugar Bom” de qualquer demanda que eles venham a ter: roupas, livros, comidas específicas, como... sei lá, frango xadrez e vinho chileno.

Aliás, o “Lugar Bom” projetado por Michael parece uma pequena vila europeia, mas com muitos estabelecimentos de Frozen Yogurt (?!) na praça central. Todos moram próximos uns dos outros, em casas construídas de acordo com os gostos de cada morador. O dia é sempre ensolarado, as noites são de céu limpo. Não há chuva ou mesmo tempo nublado no “Lugar Bom”. Ou neve, ou muito vento. Também não há necessidade de carros porque todos conseguem chegar a qualquer lugar a pé e também porque a todos será possível, no seu devido tempo (uns mil anos, mais ou menos...) aprender a voar. Quer dizer, é um lugar que se propõe perfeito para receber pessoas que, sabemos, por mais bondosas que tenham sido em vida, são imperfeitas...

Mas todo mundo anda por aí feliz e satisfeito, como se estivessem tomando doses cavalares de prozac. Mas a razão de tanta felicidade pode ser também porque no “Lugar Bom” você sempre encontra a sua alma gêmea. E isso traz mais um problema a Eleanor quando ela é apresentada à sua suposta alma gêmea: Chidi, o inseguro e corretíssimo professor universitário de filosofia, moral e ética. Temos então os elementos que se combinam para nos oferecer uma comédia de fantasia que se aproveita de questões universais e atemporais sobre a morte e a possibilidade de uma vida pós-morte para trazer, com humor e leveza, uma reflexão sobre a vida e a condição humana.

“The Good Place” vai nos mostrar o esforço de uma mulher que em vida foi medíocre, egoísta e invejosa em se regenerar. De início, seus motivos são igualmente egoístas: ela quer evitar uma eternidade de sofrimentos no “Lugar Ruim” (e essa motivação inicial de Eleanor é responsável por boa parte das cenas cômicas que ela cria). Mas, aos poucos, Eleanor se percebe praticando boas ações de modo desinteressado, pensando sinceramente no outro, e criando vínculos afetivos com as pessoas. E o interessante é que o aprendizado dela não é como um gráfico com a seta apontando para cima o tempo todo. Ela vacila, diz besteiras, pensa em tirar proveito de determinadas situações...  Mas também demonstra uma grande vontade de aprender a ser alguém moralmente melhor. E então vamos entendendo que Eleanor não é uma pessoa extremamente ruim. Nem extremamente boa. Ela é humana, somente. Não é (ou foi) das melhores, não, verdade. Mas, ainda assim.


E é a partir dessa dimensão humana de Eleanor que a série faz uma crítica importante a essa tendência que muitas vezes temos de “polarizar” pessoas como “boas” ou “más”. “The Good Place” também nos mostra como a amizade pode ser um valioso motivador na busca da melhor versão de nós mesmos. Os vínculos afetivos que ela estabelece são fundamentais na sua regeneração, pois quando ela começa a perceber que se importa com o bem-estar de outras pessoas (principalmente Chidi, o primeiro a tornar-se cúmplice no fingimento de Eleanor), começa também a parar de pensar apenas em si mesma.

“The Good Place” é uma ótima pedida para você relaxar um pouco e rir muito, seja sozinho, com a família, o namorado ou namorada... Porque você não vai apenas se entreter, você vai se entreter com um material que trabalha com um humor inteligente e que te convida a refletir um pouco sobre o que é importante nesta vida em que estamos agora, neste momento.

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Abaixo você confere o link para o trailer de "Good Place".




segunda-feira, 4 de setembro de 2017

palavras e imagens, cores e simplicidade


Palavras e imagens
Direção: Fred Schepis (2014)
Com: Juliette Binoche e Clive Owen



Um filme pode ser despretensioso e simples, e ao mesmo tempo abordar temáticas complexas e incitar reflexões. Quanto se consegue equilíbrio e ritmo entre estes aspectos tem-se um filme como “Palavras e imagens”, que consegue em uma narrativa de uma hora e cinquenta e seis minutos falar sobre a riqueza e a incompletude das formas de comunicação e a expressão da humanidade entre... Imagens e palavras.

A tensão e o flerte entre um professor de literatura e uma professora de artes plásticas levanta o problema da importância de uma sobre a outra: qual forma artística é a mais necessária? A mais completa? A mais importante? A mais verdadeira? Como alguém que estuda imagens, foi curioso pensar que nunca concebi uma imagem à parte do meio social no qual ela foi construída; e esse meio envolve, necessariamente, a linguagem, as palavras... Imagens e palavras, para mim, são como parte de uma mesma família, criada por nós, bichos humanos, porque como a Profa. Dina Delsanto (Juliette Binoche) nos lembra, a natureza não nos basta, os instintos não nos explicam em nossa completude... E complexidade.

Mas “Palavras e imagens” mostra outra camada: uma que envolve relações humanas, suas fragilidades, suas limitações e seu poder de regenerar perdas e feridas emocionais. As imagens de Dina Delsanto (Juliette Binoche) traduzem a interrupção de uma carreira bem-sucedida que estava no auge. Quando recebeu o diagnóstico de artrite reumática, a artista plástica, já famosa em Nova York, teve que interromper seu trabalho e aceitar o cargo de professora de artes avançadas na pequena cidade onde vive a família. É neste novo ambiente que Delsanto encontra uma aluna que a motiva... E um professor que a instiga.



É muito bonito ver como Dina reage diante do progresso da doença. Ela sente uma raiva que não permite comodismos ou autopiedade, mas a move em busca de alternativas para continuar pintando:  cadeiras, ganchos, fitas adesivas entre outros objetos são incorporados ao pincel. O jogo de cores em torno da personagem, principalmente nas roupas e nas tintas que usa são um deleite à parte ao expectador.

Já o professor Jack Marcus (Clive Owen) parece uma versão “customizada” de Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos (1989). Escritor premiado e idolatrado pelos alunos (principalmente os meninos), ganhou a alcunha de “Captain my Captain”, referência clara ao conhecido personagem protagonizado por Williams.

Para quem não lembra, em Sociedade dos Poetas Mortos (Peter Weir, 1989), o jovem Robin Williams interpreta John Keating, um professor de literatura inglesa nem um pouco convencional que vai lecionar numa conservadora escola preparatória de meninos. Propondo metodologias de ensino inovadoras e criando um bom relacionamento com os alunos, Keating convida os mais “audaciosos” da turma a chama-lo de “Captain my Captain”, do poema de Walt Withamn, “Oh, Captain! My captain! ” (1865), em referência à morte de Abraham Lincoln.

Mas as semelhanças com o amado e revolucionário professor param por aí:  a facilidade com que Marcus articula palavras e provoca Delsanto esconde o silêncio da solidão de um homem que não sabe se relacionar com o filho, tem problemas com bebida, não publica há anos e está em vias de ser demitido.


A chegada de Dina à escola chama atenção de Jack, que não faz ideia do quanto a motiva como artista e como pessoa com suas provocações intelectuais. Jack Marcus é um homem cujos problemas com a bebida, com o filho e com suas próprias frustrações não permitem que veja o quanto é capaz de ajudar e inspirar alguém.

Somente após arriscar emprego e vínculos afetivos (inclusive com o próprio filho), Jack se dá conta do quão destrutivos seus atos podem ser. Em uma cena muito bem construída em que volta para casa de ressaca e cheio de arrependimentos, ele corta a mão num gargalo quebrado de garrafa de vodka que estava no topo da pilha da lata de lixo. O sangue goteja em cima do gargalo, como que remetendo às feridas emocionais que ele foi capaz de causar em pessoas que ele ama e a si mesmo.

A leveza e simplicidade ficam por conta do roteiro, que encontrou o “timming” certo para criar momentos cômicos, especialmente nas respostas secas e inesperadas de Delsando aos flertes e provocações de Marcus. Isso aliado a uma feliz sucessão de montagens “plano/contra-plano” resultou em um ritmo de filme vigoroso, cheio de charme, que nos mostra que quando dois universos tão cheios de emoções, perdas e dores se encontram, como Dina e Jack, nada mais em suas vidas será como antes.





Ah, você pode encontrar Imagens e Palavras na Netflix e no Youtube (completo)

domingo, 23 de julho de 2017

Um filme cujas perguntas não precisam de respostas

Direção e roteiro de  Aaron Hann e Mario Miscione (2015) 


“Circle” é um filme de roteiro tão bom, mas tão bom, que se sustenta praticamente sozinho: personagens em pé, formando um circulo dentro de outro, numa sala escura, discutindo e escolhendo o próximo entre eles que irá morrer.

E que critérios seguir para decidir vida e morte de alguém? Idade? Caráter? Profissão? Raça? Religião? Se tem família? “Circle” se desenrola em cerca de uma hora e vinte minutos refletindo acerca de questões deste tipo. Estas pessoas estão confinadas em um espaço pequeno, estranho, presas por algo ou alguém que desconhecem (a suspeita que paira entre eles é a que de seriam alienígenas conduzindo algum tipo de experimento). Nestas condições, quais são os limites do nosso instinto de sobrevivência? Quão longe é possível sustentarem-se nossos valores morais?


“Circle” provoca os limites destas pessoas que parecem ter sido escolhidas ao acaso. Sobrevivência torna-se o único princípio que se sustenta. E que se busca. A qualquer custo? Possivelmente. E o mais curioso é que nos duros diálogos que se seguem, morte após morte, podemos nos colocar ali, dentro daquele círculo e nos perguntar: “Se eu estivesse ali, como me comportaria? Eu seria capaz de me sacrificar pela possibilidade de sobrevivência de uma jovem grávida que não conheço? Ou de uma menina que nunca vi? Ou será que eu não teria escrúpulos em sugerir que os mais velhos fossem mortos primeiro? Afinal, até onde uso o princípio “dois pesos, duas medidas” sem nem ao menos perceber?”.


O final é surpreendente, apesar de explicar mais do que poderia, e, explicando, deveria ter esclarecido mais do que o fez. O ponto é: se for para manter determinadas perguntas sem respostas, melhor não responder pela metade ou de um jeito torto. Mas se for explicar, por favor, faça direito. E pela proposta do roteiro, acredito que esclarecimentos acerca de uma série de questões levantadas pelas pessoas em cativeiro não necessariamente precisariam ser dados, pois o foco está no que é conversado dentro daquele espaço fechado, entre aquelas pessoas submetidas a uma situação limite.

“Circle” é um filme perturbador, que não te tira da zona de conforto; te expulsa de lá com um pé na bunda. Não assista se você chegou em casa cansado, se teve um dia ruim ou se está se sentindo triste... Mas assista. Respire fundo e assista.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Um filme de amor e delicadezas

TOMBOY (Céline Sciamma, 2011, França)

*De acordo com alguns dicionários modernos, uma menina TOMBOY é uma garota que tem características e comportamentos considerados típicos de um menino, o que inclui usar roupas masculinas, gostar de jogos e atividades que em muitas culturas são considerados nem um pouco femininos e são dominantes dos garotos”.



Agora sim, o filme francês que eu havia prometido!
Aqui você confere o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=JvfdCI4MArQ




Ouvi dizer que houve um burburinho sobre Tomboy ser ou não ser um filme de gênero, na ocasião do lançamento. Entendo que ele é, sim, um filme de gênero, mas que não fala de sexo, nem de relações amorosas, ou paixões, ou desdobramentos do tipo, como é o caso de Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche, 2013), Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014) ou Carol, (Todd Haynes, 2016) por exemplo. Não. Tomboy fala de uma menina que gosta de um monte de coisas de menino. E que um dia ousou ser um menino diante de outros meninos. A diretora aborda o tema com uma delicadeza única, num longa onde somos contemplados com atuações extremamente belas,  limpas, maduras e sinceras das meninas (Laurie - Zoé Héran / Lisa - Jeanne Disson / Jeanne - Mallon Lévana) e também dos garotos, que interagem com elas. Mas Tomboy, acima de qualquer coisa, fala sobre como o amor e a amizade pode romper barreiras culturais, preconceitos e intolerâncias.

Tomboy chama atenção pela ausência de trilha sonora. Em contrapartida, os sons ambiente (passos, sons pratos e talheres batendo, conversas, risos, água, etc.) se sobressaem, contribuindo para dar ao filme um contorno realista, de documentário. A câmera exerce a função de testemunha da vida dupla de Laurie, registrando seus passos, tornando-se cúmplice de seus segredos. As cenas e os diálogos são muito “limpos”; são reproduções muito próximas do cotidiano de uma família comum, o que também reforça o tom documental do filme. Há muitos close-ups, que causam um efeito de aproximação do espectador com os personagens e suas emoções (outro recurso comum em documentários).

A câmera também nos convida a ser parte dos segredos de Laurie, nos apresentando uma estética fílmica crua, não apenas pelos silêncios que a ausência de uma trilha sonora ressalta, mas também por elementos e situações que a câmera não mostra. Em Tomboy aquilo que não nos é mostrado pode nos dizer e nos revelar muito.

Toda essa crueza estética é contrabalançada com um tom de doçura que se manifesta na relação de Laurie com outras crianças, principalmente sua irmã mais nova, Jeanne. Temos em Jeanne um contraponto que acentua o comportamento considerado “masculino” de Laurie: Jeanne tem o cabelo longo e cacheado, usa vestididinhos, brinca com bonecas, fala e age de um jeito mais delicado, enquanto Laurie tem o cabelo curto, usa bermudas e camisetas e gosta de jogar futebol com os meninos.


Outra menina que se torna importante na vida de Laurie é Lisa, a vizinha do condomínio. Quando as duas se veem pela primeira vez, Lisa acredita estar diante de um garoto, impressão que Laurie confirma e incorpora ao dizer que seu nome é Mikael. É a partir deste encontro com Lisa, portanto, que “surge”, por assim dizer, uma segunda identidade, masculina, que parece dar vazão a vontades e desejos legítimos de Laurie.

O espectador é apresentado à protagonista de maneira bem peculiar: vemos uma criança em um carro com a figura que corresponde e posteriormente se confirma como seu pai. O carro está em movimento, então de mudança. Vemos, então, esta criança que fisicamente (de acordo com padrões culturais que conhecemos) parece um menino: veste-se como um menino, age como um menino e tem o cabelo bem curto, como o de um menino. Temos somente estas aparências como informação (o nome ainda não nos é dito nos primeiros minutos de filme). A revelação do gênero biológico se dá concomitante à pronuncia dos nomes das duas irmãs. Informação verbal e não-verbal se expressam ao mesmo tempo, quando elas estão tomando banho na banheira e brincando, e a mãe as chama. Ambas se levantam e, nuas, percebemos que o aparente/possível garoto é, na verdade, uma garota. E o nome de batismo dela é Laurie.

Parece que “ser um menino” é natural para Laurie, excetuando as preocupações em manter a segunda identidade, os artifícios que encontra para fazer-se passar por Mickael, como ensaiar trejeitos de menino diante do espelho, o estar com os outros garotos e com Lisa, sendo um menino.São cenas construídas de modo a expressar muita naturalidade,e não só em Laurie/Mikael, mas nas outras crianças também. Os cenários reforçam a espontaneidade de Laurie/Mikael nesses momentos descontraídos, da mesma forma que também manifestam o desconforto da protagonista diante da família, em viver uma vida dupla: o apartamento em que vive com os pais e a irmã é escuro, mesmo durante o dia; as paredes dos cômodos têm cores frias e neutras, e se mostram pouco espaçosos, dando ao espectador uma sensação de melancolia e opressão, que se dilui em grande parte somente quando as irmãs estão brincando. Por outro lado, as cenas externas em que Laurie/Mikael brinca com as outras crianças do condomínio são cenários rodeados de grama verde, luz do sol, plantas, árvores, lagoa... Não há elementos sombrios, ou que possam nos remeter a opressão ou tristeza, mas sim à liberdade e alegria.


É curioso notar que os pais de Laurie parecem não se importarem ou mesmo estranharem o modo como ela se veste ou se comporta; lidam com muita naturalidade, sem recriminações, ainda que a mãe tenha manifestado entusiasmo quando a garota aparece em casa maquiada. Parece que o “problema” se torna real/concreto quando ele ganha um nome – Mickael; e sai da privacidade do lar.
O pai se comporta de forma neutra e um tanto passiva quando a identidade Mikael é descoberta. Diante da filha em prantos, ele se aproxima e lhe diz: “isso vai passar”. Fica a dúvida: a que o pai se refere que vai passar? A raiva da mãe? O “conflito“ de gênero da filha? A dor de não ser compreendida? Não sabemos o que o pai quer dizer. Mas sabemos que este pai não apoiou a filha explicitamente. O único membro da família a fazer isso foi Jeanne, que tem cerca de cinco anos de idade, apenas.  Ela continuou respeitando e amando Laurie/Mikael da mesma forma. Outra curiosidade com relação aos pais de Laurie/Mikael é que eles não têm nome, o que acentua suas funções de tipos (“o pai”; “a mãe”).

Para a mãe, não havia problemas em “brincar de ser menino” dentro de casa, longe dos outros, mas dar a si mesma um nome masculino e levar a brincadeira a sério, diante de outras crianças, tornou-se uma adversidade de proporções tão desmedidas que esta mãe passa a atuar como um agente de controle. A partir do momento em que descobre a identidade Mikael, esta mãe regula, calcula e busca modos coercitivos para trazer o corpo da personagem de volta à “normalidade”, não só impondo-lhe o uso de um vestido, uma “marca de menina”, mas expondo-a e a esta marca, esta “prova de gênero” diante do olhar dos outros, começando pela mãe de Lisa. É interessante observar o quanto constituía uma prioridade a esta mãe afirmar a filha como menina, a despeito de qualquer desconforto, embaraço, ou mesmo sofrimento pelo qual Laurie/Mikael pudesse estar sentindo.

Tomboy é um filme de amor e de delicadezas, para muitas idades e gêneros...

Abaixo segue o link de um debate sobre o filme na Universidade de Fortaleza - Unifor, o qual eu tive o grande prazer de participar, na companhia da Prof. Ana Caroline Borges, com moderação  do Prof. Dr. Márcio Acselrad, que também coordena o Projeto CineClube Unifor, com sessões abertas ao público todas as quintas feiras as 13:30h na videoteca do centro de convivência do campus.


quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Justiça começa com ela..."


** Mulher Maravilha (2017) tem direção de Patty Jenkins, que também escreveu o roteiro, junto com Allan Heinberg e Geoff Johns.

Eu disse que ia começar este blog com um filme francês, mas fui à estreia de Mulher Maravilha e não poderia deixar de registrar minhas impressões. Aliás, talvez inaugurar o blog com este filme seja até mais... providencial, na falta de uma palavra melhor. E sim, este post vai estar carregado de emoção e parcialidades porque eu sou fã de Diana Prince.

Ademais, eu não poderia agora elaborar agora uma análise fílmica propriamente dita, do jeito que eu gostaria de fazer porque para que eu a fizesse da forma como entendo ser satisfatória, dando conta dos aspectos que considero relevantes como figurino, cenários, montagem, formação de planos e sequencias, banda sonora (e etc) eu precisaria assistir ao filme novamente (de preferência mais duas ou três vezes, pelo menos, com possibilidades de pausar, retroceder e avançar). Não que isso venha a ser um problema, pois este é um filme para se assistir de novo e de novo, mas eu gosto de elaborar uma análise com cuidado. O que vem agora são muito mais impressões de uma fã da heroína que, como muitos e muitos, aguardava esta estréia com ansiedade e ao mesmo tempo com muito receio de ver a tão querida personagem reinventada de modo truncado...

Mas não. Mulher Maravilha não decepciona. Na verdade, tira o seu fôlego com um verdadeiro desfile de elegância, delicadeza, força e determinação. Nos colocamos diante de uma protagonista que te encanta instantaneamente e tira o teu fôlego pelas duas horas e meia de uma narrativa que soube equilibrar elementos mitológicos próprios do universo de Diana com cenas de ação, humor e romance.

Falar de Temiscira poderia render um post à parte. Não sou leitora de quadrinhos, vale a ressalva. O carinho pela Mulher Maravilha eu cultivo dos desenhos animados da Liga da Justiça, incluindo alguns longas que mostravam a terra onde Diana nasceu. E a Temiscira deste filme não decepcionou minhas lembranças... Nem minha imaginação. É uma invenção da natureza na sua forma mais bela e perfeita; parecia até um pedaço do Mundo das Ideias que Platão descrevia.



Admito que esperava uma Diana mais atlética, musculosa mesmo, afinal, trata-se de uma guerreira, que também é uma deusa. Mas o carisma de Gal Gadot quase me fez esquecer essa resistência minha (essa e a de que ela não tem os olhos azuis que a minha Mulher Maravilha dos desenhos tem). São apenas detalhes perto da excelência que se manifesta no desempenho de Gadot. Arrisco dizer que ela será marcada como Mulher Maravilha de forma semelhante a Chistopher Reeves, que ainda hoje permanece como nosso mais querido e lembrado Superman.
Na verdade, quero um post só para o Superman desta nova geração... Ele não me decepciona, de forma alguma. Eu chego a causar espanto em algumas pessoas quando afirmo que gostei de Man of Steel. Mas as expectativas eram altas demais e já tínhamos nosso Reeves, não é...?


Mas voltando para a Mulher Maravilha de Gal Gadot, foi gratificante ter expectativas superadas e não sentir o passar daquelas mágicas duas horas e meia. Depois de lidar com tantas críticas, problemas de roteiro, de montagem e outros tantos desde Man of Steel, temos um filme DC simplesmente digno do universo DC. E sabe, acho muito inspirador (e não por acaso) que tenha acontecido com o filme dela, que é não apenas uma mulher, mas a mulher, a heroína mais famosa do universo dos quadrinhos. Valeu, Diana!



terça-feira, 16 de maio de 2017

Na mitologia grega, Danaides eram as 50 filhas de Danáo, cujo irmão gêmero, Egipto forçou o casamento delas com os seus 50 filhos. Em retaliação, Danáo instruiu as filhas a matarem os maridos na noite de núpcias. 49 delas obedeceram, menos Hipermnestra, pois seu marido, Linceu, não a violou. As 49 Danaides foram punidas no Hades a lavarem seus pecados enchendo continuamente uma jarra com furos, que faziam a água escoar. Daí a referência de Aumont ao "tonel das Danaides".
Aumont diz que a análise fílmica é um tonel das Danaides: um recipiente com furos, o qual não pode ser enchido até seu limite, por mais que nele se coloque água, pois ela escorre continuamente por baixo. Uma análise fílmica não se esgota porque os elementos do filme não podem ser totalmente apreendidos. Eles nos escapam, da mesma forma que a água não pode ser contida no tonel das Danaides.
Então vamos falar de filmes. Vamos falar de cinema. Vamos também falar de séries... E vamos fazer tudo isso com uma pitada de análise, para fundamentar algumas coisas, mas não mais que isso, para não deixar o texto acadêmico demais - o informal e o cotidiano terão a preferência. 
Muito prazer, eu sou Aline Rebouças e este é o Tonel das Danaides, um espaço para pensar o cinema e a televisão. Seja bem vindo, fique à vontade. No próximo post (que vai sair já já) vou apresentar um filme francês bem especial.