terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O humano da loucura

com a colaboração de Samara Ribeiro*


As patologias que acometem a psique humana são vistas como um grande mistério desde os primórdios da história da humanidade. A ciência conseguiu desmistificar uma série de fenômenos anteriormente atribuídos ao sobrenatural; no entanto, no que concerte às doenças mentais, existe ainda uma zona cinzenta, uma parte envolta de aspectos os quais os estudos de psiquiatria, psicopatologia e psicologia ainda não conseguem descortinar completamente.




No filme brasileiro Nise: O coração da loucura (Roberto Berliner, 2016) temos o duro embate entre a visão da psiquiatria tradicional e uma “psiquiatria humanista”, interessada em deslocar a problemática da loucura do campo da psicopatologia médica para o campo da subjetividade, da cultura e do social.

Mais interessado na metodologia de trabalho pioneira da Dra. Nise da Silveira do que propriamente em sua biografia, o filme não menciona os dois anos de prisão e quatro anos de afastamento do exercício da medicina. Durante a Intentona Comunista, Nise foi denunciada por uma enfermeira, por ter em posse livros marxistas. 


O início da narrativa ocorre após a saída de Nise da prisão e seu consequente retorno ao trabalho. A abertura, isenta de trilha sonora musical, traz um plano aberto, mostrando uma fachada e um portão envelhecidos e malcuidados do que depois vemos ser do Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro de 1944. 

A protagonista, personificada na atriz Glória Pires, aparece diante da fachada e bate no portão. Como ninguém atende, ela bate novamente. Diante do repetido silêncio em resposta, a mulher esmurra o portão, quando finalmente ele é aberto. Esta é uma cena que, isenta de palavras e somente ao som das batidas de Nise, constroem metaforicamente o prenúncio de sua trajetória neste hospital: ela não será ouvida, ela será tratada com menosprezo, mas ela não irá se calar, e não irá desistir de provar a viabilidade de um tratamento digno, humano e isento de violência aos internos acometidos de severos tipos de esquizofrenia.

As explicações mágicas para doenças mentais não foram enterradas de maneira definitiva com nossa Pré-história. Elas persistem de maneiras mais ou menos ocultas. A figura do “louco” ainda é fortemente marcada pela visão de senso comum como um doente que com algo de nocivo dentro de si, e que precisa ser extirpado, seja mediante uso de medicamentos ou de inúmeras práticas que prometem resolver (quase que “magicamente”) seus problemas patogênicos.


                             

E no filme de Berliner isso é bem ilustrado logo na primeira cena, que dá sequência à abertura: Nise, recém-chegada no Centro Engenho de Dentro, acompanha uma conferência de psiquiatras, onde o expositor apresenta técnicas consideradas inovadoras de “cura” das doenças mentais que envolvem lobotomias e intervenções cirúrgicas cerebrais com a utilização de picadores de gelo. Estas técnicas prometiam cura através da retirada da “parte doente” do cérebro dos pacientes, que, após o procedimento cirúrgico estariam reabilitados a regressarem aos seus lares e possibilitados de se reinserirem no convívio social.

Vemos também a tendência iniciada na segunda metade do século XIX à supervalorização do saber médico. O lugar de “sujeito do saber” do psiquiatra nos é constantemente apresentado. Na mencionada conferência em que Nise adentra, vemos um público expectador composto por médicos, homens, todos trajados com seus jalecos brancos, vestimenta que nos comunica esse lugar de poder que a medicina ocupa (va?). Nise, no entanto, entra no auditório e participa da reunião sem o seu jaleco, como a informar em silêncio que não precisa ostentar a sua formação.

A ausência do jaleco de Nise também comunica uma relação de igualdade que ela estabelece com os internos, pois não a vemos trabalhando de jaleco dentro da instituição. O filme, portanto, dialoga de maneira crítica com esta realidade da medicina que se enxerga e se mostra como entidade detentora absoluta do saber. E desconstrói, a partir das ações de Nise, a validade desta forma engessada de pensar e tratar a doença mental. A protagonista promove o despojamento de estereótipos no cotidiano do seu atendimento: “eles não são pacientes; nós é que devemos ser pacientes com eles”.

No reconhecimento de vínculos afetivos entre os assistidos e deles com os cachorros que circulam no pátio do hospital psiquiátrico também vemos acontecer uma quebra de modelo segregador da loucura, pois Nise cria um movimento que segue, ao longo do filme, despindo os assistidos dos elementos que os isolam do mundo, das pessoas, da vida que acontece fora dos muros institucionais.

Esta ruptura com a banalização do encarceramento manicomial prossegue na cena (produzida com muita delicadeza, aliás) em que Nise oferece roupas aos internos e os incentiva a usá-las, ao invés dos camisolões sujos e encardidos. As roupas “normais” que Nise entrega representam todo um universo de possibilidades que se abre com o empenho desta psiquiatra em obter resultados concretos na implementação de um tratamento novo e diferenciado ao esquizofrênico.

Nise elabora este tratamento de maneira um tanto intuitiva, durante a sua prática, tendo as Artes Plásticas e a Psicologia Analítica de Jung como referência. Seu método vai se construindo ao longo de cada dia, na interação e observação dos internos nas produções com materiais de pintura durante a terapia ocupacional. Neste processo, ela segue considerando as demandas individuais dos internos, restituindo-lhes, um pouco a cada dia, a dignidade e autonomia que o encarceramento médico havia lhes extirpado.

Nise... é mais do que um convite, mas uma convocação à sociedade, especialmente aos profissionais de saúde mental, a pensarmos os métodos de tratamentos psiquiátricos de que dispomos. Apesar de retratar o Brasil dos anos de 1940, o filme nos lembra o quão ainda estamos próximos desta realidade histórica que segrega o doente mental e lhe aliena de seu direito de existir no mundo. Mostra também o quanto esta forma de pensar a doença mental está próxima daquele pensamento construído no distante (?) primórdio de nossa existência.

Nise da Silveira nos deixou uma lição que o filme muito poeticamente nos lembra: não é o psíquico que determina a relação do Homem com o mundo, mas é a relação do Homem com o mundo que, desde o primeiro instante, estabelece uma maneira de ser, uma certa subjetividade. Assim, todos nós temos algo de patológico, algo que precisa ser cuidado, e que não necessariamente precisa ser extirpado; mas talvez precise ser visto, ouvido e compreendido, ou pelo menos devidamente respeitado.





*A Samara Ribeiro é uma colega muito querida que cursou comigo a disciplina de psicopatologia geral neste semestre, da faculdade de psicologia. Este artigo foi adaptado de um trabalho que fizemos para esta disciplina.






5 comentários:

  1. Amei as informações irônicas entre parênteses, como "Ocupa(va?)" e "Distante (?)" Kkkkkkkk
    Ótima análise! Não tinha percebido quantas informações estavam ali, discretamente inseridas, como o significado das batidas no portão e a ausência do jaleco. Adorei!

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    1. Que bom que você gostou! Análise fílmica é um exercício do olhar... E a gente pode aprender muito :)

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  2. filme que me envolveu.Confesso que fiquei meio que reflexiva.sua importância para a psiquiatria é algo incontestável.A sua forma individual e respeitosa de tratar os pacientes.A ideia do uso dos pincéis.Eu uso o pincel,e você usa um picador,essa frase dita por Nise ficou na minha mente.

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    1. Sim, essa frase é de muito impacto! O filme soube contar esse trabalho de Nise de uma maneira muita delicada e respeitosa. Me tocou bastante também.

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